terça-feira, 20 de junho de 2017

AS MOSCAS, DE JEAN-PAUL SARTRE, POR YOLANDA SILVA






"As moscas", de Jean-Paul Sartre (1905-1980), é uma peça teatral escrita no ano de 1943, em meio a Segunda Gerra Mundial. Esta peça trata do dilema de um jovem chamado Orestes que vê-se cobrado por sua irmã Electra a se vingar dos assassinos de seu pai Agamêmnon. Todavia, o jovem vive o drama moral de se vingar da morte do pai para assumir seu trono de direito, matando a própria mãe Clitemnestra e seu amante Egisto assassinos e usurpadores de seu trono.


A peça é inspirada na obra do grego Eurípides poeta e dramaturgo clássico do século V a. C., este era considerado um precursor do texto teatral filosófico, por isto fora chamado de "filósofo do teatro", porque em suas peças, procurava sempre pensar a condição da mulher na sociedade grega dentre outros temas filosóficos. Deste modo, não é só a peça escolhida que aproxima Sartre de Eurípides, mas ambos usam o drama para filosofar sobre a condição existencial humana.


A tragédia de Orestes é um braço de um drama maior criado por Eurípides que começa basicamente com a história de Ifigênia. Quando Helena é sequestrada e levada para Tróia, Agamêmnon está preparando os meios para a guerra devido a afronta a seu irmão Menelau, marido de Helena. Tudo estava pronto para ida dos gregos à Troia, mas Agamênon caça um cervo em uma floresta sagrada e se gaba de sua arte de caçador. A deusa Ártemis manda ventos fortes no porto Áulis que impedem os navios de seguir seu caminho. Os ventos só seriam cessados se o rei Agamêmnon sacrificasse sua filha Ifigênia. O rei faz toda uma trama de mentiras para atrair a filha, enganando a mãe Clitemnestra, dizendo a mesma que trouxesse a filha para ser desposada por Aquiles. Depois de muitas reviravoltas, em que o próprio Aquiles quis travar uma guerra para salvar a jovem donzela, Ifigênia se doa em sacrifício para impedir a guerra entre seu povo. A deusa Ártemis troca seu corpo por um cervo no momento do sacrifício e a torna sacerdotisa, todavia, sua mãe acaba se vingando sete anos depois de sua suposta morte, matando Agamêmnon. Tempo depois, Orestes que fora exilado, volta para se vingar e mata a própria mãe Clitemnestra e o seu amante Egisto.

A peça "As Moscas", de Jean- Paul Sartre, detém-se na vingança de Orestes para analisar a crise moral de um homem diante do matricídio e regicídio. Todavia, para além da tragédia por vingança, Sartre usa a peça como alegoria para refletir sobre a liberdade diante da opressão e culpa. Vale também salientar a principal diferença entre o Orestes da peça de Eurípides que é sucumbido pela culpa e o Orestes da peça de Sartre que além de não se culpar, ainda carrega consigo a culpa do povo de Argos.

 A peça de Sartre é um exemplo de arte engajada, "teatro de situações", porque por meio do enredo pode fazer premissas filosóficas didáticas e manejando um pensamento que possa ser subversivo, proporcionando a luta social diante de um opressor vigente, tanto de ordem governamental física, pessoal ou moral religiosa.

A peça foi encenada no ano de 1943, época em que a França fora submetida à Alemanha, porque havia se rendido no ano de 1940. Sendo assim, as moscas simbolizam o invasor Nazista que oprime e come a carne da população. Argos é a França invadida; as moscas são os Nazistas e suas ideologias; os personagens cobertos por moscas são os franceses submetidos aos ideias Nazistas obrigados a colaborar mesmo sem compactuar com os ideias de Hitler. As moscas também podem representar a culpa moral imputada pela Igreja Católica francesa da época que colaborava com os Nazistas.

As moscas estão sobre a população de Argos, comendo e deixando em carne viva sua pele, como castigo pelos crimes de Clitemnestra e seu amante Egisto. Da mesma maneira, Sartre aponta que a população francesa sofre as mazelas de escravização, humilhação e submetimento a ideologia que não lhe pertencia.

Contudo, Sartre não só aponta as culpas e mazelas da omissão de Argos diante da falta de luta por sua liberdade, ele demonstra como deveria haver a libertação por meio da personagem Orestes. 

Enredo da peça

Orestes e o Pedagogo chegam a cidade de Argos e encontram as pessoas cobertas por moscas gigantes que comem as carnes dos mesmos. Logo de imediato, tentam falar com umas mulheres que fogem, algum tempo depois, encontram um personagem que se chama o Idiota que é o único que os responde monossilabicamente. O Idiota expressa bem, logo no início da peça, a condição que está a cidade de Argos.




Em busca de encontrar sua irmã Electra e levá-la embora da cidade, horrorizado com a condição de culpa e miséria em que vivem os habitantes de Argos, ele tem um outro caminho que lhe é imposto. Electra não quer sair de sua cidade, não quer deixar a única forma de vida que conhece. Ela até se encanta em imaginar os lugares alegres, onde as crianças e seus familiares vivem sem culpa que Orestes descreve, mas sua ânsia por vingança é maior. Orestes é influenciado a cometer o matricídio a pedido da irmã e, também, no impulso de limpar a honra de seu pai.  

O crime está prestes a ser cometido, mas o deus Júpiter tenta intervir, avisando a Egisto, mas este não quer matar, não quer viver mais com a culpa e suas companheiras moscas. Ele prefere ser morto por seu enteado vingativo. Depois de idas e vindas dialógicas, Orestes mata Egisto e sua mãe Clitemnestra, acreditando que poderá ser feliz com sua irmã. Todavia, apesar de Electra dançar em um ritual dedicado aos mortos, como ato de subversão e no intuito de mostrar aos habitantes de Argos que a culpa não existe, ela não tem a capacidade de viver e conviver com a liberdade de suas escolhas. Ela se volta contra Orestes e pede o refúgio nos braços opressores de Júpiter sendo ornada pelas moscas carnívoras. Orestes, por sua vez, sendo um homem livre, não consegue ser atingido pelas Eríneas nem pelas moscas, mas quando é cercado no templo de Delfos pelos habitantes de Argos, ele lhes dá a solução final: diz que irá levar as moscas daquele lugar, tal qual um dia, um certo rapaz encantou com uma flauta os ratos que atormentavam outra cidade. 

É complicado dizer o que significa uma obra de arte e mais uma peça teatral que fora escrita para refletir sobre temas e problemas existenciais filosóficos. A peça "As Moscas" é uma alegoria do problema da culpa e do caráter ambivalente da liberdade. Todos somos fadados a enfrentar a liberdade. Electra queria a vingança, mas não suportou a responsabilidade de tê-la quando viu sua mãe assassinada, em contra partida, Orestes é o exemplo literário do homem livre. O homem livre de remorsos, o libertador tal qual Sartre gostaria de ser para seus contemporâneos. Sejam os remorsos "criados" por uma lei moral religiosa ou por suas próprias ações pessoais. Como afirma o próprio Orestes: "O mais covarde dos assassinos é o que tem remorsos".







sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

RESENHA: "O RETRATO DE DORIAN GRAY", DE OSCAR WILDE E O REFLEXO EM UM COTIDIANO






Em uma tarde de domingo, ele acordou e me olhou como se fosse um objeto estranho a seu lado. Ontem ele dormiu mais cedo. Acredito que para não ter que ficar do meu lado mais, tempo que se desdobra. O que senti? Sinto-me meio que letárgica. Já não sinto mais?!
Hoje cedo, ele continuou dormindo até mais tarde, ainda na perspectiva de remir o tempo para não me ver. Fico intrigada e vou olhar o meu rosto no espelho para entender tal repúdio. Fico vendo meu rosto no espelho. Fico vendo meu rosto no espelho e demoro, demoro a reconhecer que sou eu. E vejo: ele mudou. Ele percebeu também e isto é demais para ele. Ou será que estou percebendo o que ele quer que perceba. O espelho é meu, mas o inferno que define o que deve ser visto é ele. Ele tem este poder sobre minha alma. Espelho espelho meu, quem é mais belo do que eu? O espelho responde: “As palavras dele”. Deveria demorar seu coração. Retomar minha beleza e juventude de volta, mas não consigo. Não quero, não posso, porque dependo dele. Diante disto, há tanta dor, tanta tristeza, tenho vivido estes últimos dias que se converteram em ano ou são anos consecutivos em dias... e isto reflete em nosso corpo?!
Ele fala que ando curvada e reclama de minha postura. Durante tantos anos tenho me abaixado, curvando-me diante dele e de suas vontades. O tempo foi implacável em muito pouco tempo comigo. Já não me reconheço mais. Estou feia sim. A pele mal cuidada. O tratamento dentário interrompido está desenvolvendo um abismo no meio de meu rosto. Antes, tão jovem, forte e agora sensível. Junta isto com o meu lado ogra exterior de perna cabeluda forçada: se ao menos eu fosse adepta do movimento feminista, teria até orgulho disto, mas fiz de tudo para economizar e crescer, mas acho que a vida é uma tristeza sem fim, onde os sonhos são abismos que criamos no nosso interior para correr nossa alma. Como escreveu mais ou menos aquela poeta que se suicidou, a poeta que se suicidou: as mulheres e as crianças são as últimas a desistirem de atracarem seus navios no ar. O amor da humanidade é uma mentira, o poeta avisou. Todavia, não quero acreditar. Ainda atraco o amor no ar?!!!
Algumas mulheres são de Marte, outras são de Vênus. Eu decidi ser da primeira opção, que na verdade é mártir na vida de quem deseja uma mulher de Vênus. Uma cabeça oca que só faz as zonas baixas se elevarem. As mulheres mais racionais veem o futuro, mas os homens querem ver o presente resolvido de acordo com suas necessidades.
Estava lendo até agora o livro “O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. E veja só que ironia, justamente neste momento em que me sinto tão triste e decepcionada com o lado macho da existência. Deparo-me com um cara, o próprio Dorian que é um pilantra de galocha. Olha que infeliz das costas ocas. Representa os infelizes desta categoria. O bicho besta Dorian vai a um teatro de segunda, encontra uma atriz interpretando algumas peças de Shakespeare e se apaixona pela genialidade de uma atriz que se distingue da desagradável arte de terceira contida naquele lugar. Ele diz que ela era como uma flor de lótus sobre a lama. Destacando-se dos demais personagens atores. Dorian se apaixona e decide ir ao encontro de seus companheiros: o pintor Basil e o pilantra desagradável do Lord Henry. Ao encontra-los dá a notícia que pedira a jovem em casamento e os convidou para ver a sua amável, linda e extraordinária atriz se apresentar. 
Que contradição, quando eles vão, justamente naquele dia, a jovem é um fiasco. E o que acontece? Quando os amigos se deparam com a ordinária atriz, saem à francesa e Dorian vai ter com Sibyl Vane. Sibyl declara que antes, atuar era tudo para sua vida, mas depois que Dorian declarou seu amor, o teatro perdeu a importância. Ela atuou de forma vulgar, porque queria declarar que Dorian era mais importante, todavia, o Dorian disse que queria ela sendo a atriz genial e não a mulher que ama. A mulher que o ama.  


Dorian volta para sua casa, em um momento olha seu retrato no espelho e vê uma mudança no rosto bem desenhado. Lembra-se de ter deixado Sibyl prostrada no chão, em busca de agarrar seus pés, coração e alma, chorando para que ele não a deixasse. Ele lembra bem de achá-la patética... Patética?! Patética?! Todavia, nada se compara com o horror que aparece no quadro, mesmo que sua beleza continue intocável ao conferir a si mesmo no espelho. No outro dia, depois de se deparar com o horror no espelho, não importava, porque a aparência continuava bela. Quanto a Sybil Vane?

A adorável Sibyl
Que fez do amor
Peça mais gentil
Acabou o amor
Sendo seu covil
Matou sua dor
Saindo do mundo vil.

                Maldito seja Dorian. Maldito seja quem faz da existência o navio de egoísmo. Que tem como mentores o espírito de Lord Henry e o caráter do hedonismo e do prazer como Norte. Que o farol apague, que as estrelas sejam cobertas pelas trevas que sobem de seus negros corações. Que a tempestade das lágrimas sibylantes atormente seus mares interiores. Maldito seja o espírito que faz as fortes e belas Sibyls se entregarem a pessoas superficiais. 


O Lord Henry diz que o casamento é uma regressão no caminho do conhecimento, porque torna os homens altruístas, como se fosse o altruísmo o mal do universo. As pessoas buscam seu prazer individual quando as coisas só tem sentido quanto estamos em conjunto.  
A beleza atrai e deve ser difícil ver a degradação da mesma. Deve ser terrível conviver com a doença, o horror e a velhice, porque lembramos quem somos ou quem seremos. Caso a morte não nos livre de tão fado. Odeio a superficialidade que a beleza faz as pessoas sentirem, porque ela é um engodo da vida. Dorian mantém sua aparência e esconde o horror de sua alma expressa no quatro em um quarto fechado. Não tenho dúvidas de que a vida é terrível e bela. Duas facetas que o homem conhece e escolhe. A beleza é estética, mas é mais relacionada ao espírito. Envelhecer não é o problema, porque isto é a naturalidade da existência. O problema é fazer de nossa existência um mero caminho de Mesalina, Calígula ou Nero. Um caminho de egoísmo e morte. Um caminho de trevas e solidão.
Qual beleza é indispensável? A estética que Dorian mantém para o exterior com seu pacto macabro? Ou a beleza de uma velhice sábia que poderia ter sido mantida em seu ser enquanto o quadro seria só um quadro? Oscar Wilde acreditava que a arte deveria existir somente por ser arte. Arte pela arte. Contudo, seu livro evoca nos leitores caminhos que devem ser refletidos antes de seguidos.