sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

RESENHA: "O RETRATO DE DORIAN GRAY", DE OSCAR WILDE E O REFLEXO EM UM COTIDIANO






Em uma tarde de domingo, ele acordou e me olhou como se fosse um objeto estranho a seu lado. Ontem ele dormiu mais cedo. Acredito que para não ter que ficar do meu lado mais, tempo que se desdobra. O que senti? Sinto-me meio que letárgica. Já não sinto mais?!
Hoje cedo, ele continuou dormindo até mais tarde, ainda na perspectiva de remir o tempo para não me ver. Fico intrigada e vou olhar o meu rosto no espelho para entender tal repúdio. Fico vendo meu rosto no espelho. Fico vendo meu rosto no espelho e demoro, demoro a reconhecer que sou eu. E vejo: ele mudou. Ele percebeu também e isto é demais para ele. Ou será que estou percebendo o que ele quer que perceba. O espelho é meu, mas o inferno que define o que deve ser visto é ele. Ele tem este poder sobre minha alma. Espelho espelho meu, quem é mais belo do que eu? O espelho responde: “As palavras dele”. Deveria demorar seu coração. Retomar minha beleza e juventude de volta, mas não consigo. Não quero, não posso, porque dependo dele. Diante disto, há tanta dor, tanta tristeza, tenho vivido estes últimos dias que se converteram em ano ou são anos consecutivos em dias... e isto reflete em nosso corpo?!
Ele fala que ando curvada e reclama de minha postura. Durante tantos anos tenho me abaixado, curvando-me diante dele e de suas vontades. O tempo foi implacável em muito pouco tempo comigo. Já não me reconheço mais. Estou feia sim. A pele mal cuidada. O tratamento dentário interrompido está desenvolvendo um abismo no meio de meu rosto. Antes, tão jovem, forte e agora sensível. Junta isto com o meu lado ogra exterior de perna cabeluda forçada: se ao menos eu fosse adepta do movimento feminista, teria até orgulho disto, mas fiz de tudo para economizar e crescer, mas acho que a vida é uma tristeza sem fim, onde os sonhos são abismos que criamos no nosso interior para correr nossa alma. Como escreveu mais ou menos aquela poeta que se suicidou, a poeta que se suicidou: as mulheres e as crianças são as últimas a desistirem de atracarem seus navios no ar. O amor da humanidade é uma mentira, o poeta avisou. Todavia, não quero acreditar. Ainda atraco o amor no ar?!!!
Algumas mulheres são de Marte, outras são de Vênus. Eu decidi ser da primeira opção, que na verdade é mártir na vida de quem deseja uma mulher de Vênus. Uma cabeça oca que só faz as zonas baixas se elevarem. As mulheres mais racionais veem o futuro, mas os homens querem ver o presente resolvido de acordo com suas necessidades.
Estava lendo até agora o livro “O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. E veja só que ironia, justamente neste momento em que me sinto tão triste e decepcionada com o lado macho da existência. Deparo-me com um cara, o próprio Dorian que é um pilantra de galocha. Olha que infeliz das costas ocas. Representa os infelizes desta categoria. O bicho besta Dorian vai a um teatro de segunda, encontra uma atriz interpretando algumas peças de Shakespeare e se apaixona pela genialidade de uma atriz que se distingue da desagradável arte de terceira contida naquele lugar. Ele diz que ela era como uma flor de lótus sobre a lama. Destacando-se dos demais personagens atores. Dorian se apaixona e decide ir ao encontro de seus companheiros: o pintor Basil e o pilantra desagradável do Lord Henry. Ao encontra-los dá a notícia que pedira a jovem em casamento e os convidou para ver a sua amável, linda e extraordinária atriz se apresentar. 
Que contradição, quando eles vão, justamente naquele dia, a jovem é um fiasco. E o que acontece? Quando os amigos se deparam com a ordinária atriz, saem à francesa e Dorian vai ter com Sibyl Vane. Sibyl declara que antes, atuar era tudo para sua vida, mas depois que Dorian declarou seu amor, o teatro perdeu a importância. Ela atuou de forma vulgar, porque queria declarar que Dorian era mais importante, todavia, o Dorian disse que queria ela sendo a atriz genial e não a mulher que ama. A mulher que o ama.  


Dorian volta para sua casa, em um momento olha seu retrato no espelho e vê uma mudança no rosto bem desenhado. Lembra-se de ter deixado Sibyl prostrada no chão, em busca de agarrar seus pés, coração e alma, chorando para que ele não a deixasse. Ele lembra bem de achá-la patética... Patética?! Patética?! Todavia, nada se compara com o horror que aparece no quadro, mesmo que sua beleza continue intocável ao conferir a si mesmo no espelho. No outro dia, depois de se deparar com o horror no espelho, não importava, porque a aparência continuava bela. Quanto a Sybil Vane?

A adorável Sibyl
Que fez do amor
Peça mais gentil
Acabou o amor
Sendo seu covil
Matou sua dor
Saindo do mundo vil.

                Maldito seja Dorian. Maldito seja quem faz da existência o navio de egoísmo. Que tem como mentores o espírito de Lord Henry e o caráter do hedonismo e do prazer como Norte. Que o farol apague, que as estrelas sejam cobertas pelas trevas que sobem de seus negros corações. Que a tempestade das lágrimas sibylantes atormente seus mares interiores. Maldito seja o espírito que faz as fortes e belas Sibyls se entregarem a pessoas superficiais. 


O Lord Henry diz que o casamento é uma regressão no caminho do conhecimento, porque torna os homens altruístas, como se fosse o altruísmo o mal do universo. As pessoas buscam seu prazer individual quando as coisas só tem sentido quanto estamos em conjunto.  
A beleza atrai e deve ser difícil ver a degradação da mesma. Deve ser terrível conviver com a doença, o horror e a velhice, porque lembramos quem somos ou quem seremos. Caso a morte não nos livre de tão fado. Odeio a superficialidade que a beleza faz as pessoas sentirem, porque ela é um engodo da vida. Dorian mantém sua aparência e esconde o horror de sua alma expressa no quatro em um quarto fechado. Não tenho dúvidas de que a vida é terrível e bela. Duas facetas que o homem conhece e escolhe. A beleza é estética, mas é mais relacionada ao espírito. Envelhecer não é o problema, porque isto é a naturalidade da existência. O problema é fazer de nossa existência um mero caminho de Mesalina, Calígula ou Nero. Um caminho de egoísmo e morte. Um caminho de trevas e solidão.
Qual beleza é indispensável? A estética que Dorian mantém para o exterior com seu pacto macabro? Ou a beleza de uma velhice sábia que poderia ter sido mantida em seu ser enquanto o quadro seria só um quadro? Oscar Wilde acreditava que a arte deveria existir somente por ser arte. Arte pela arte. Contudo, seu livro evoca nos leitores caminhos que devem ser refletidos antes de seguidos.