In memorian do herói Golyádkin
"O Duplo" é o segundo romance publicado por Fiódor Dostoiévski, no ano de 1846. O romance é narrado em terceira pessoa, mas o narrador, apesar de ter um cunho psicológico, só se detém na figura do Yákov Pietrovitch Golyádkin: a quem dá o epíteto de herói. O romance se passa na casa do herói, na repartição em que trabalha, em algumas tabernas e na casa do chefe da repartição. Até chegar ao destino menos desejado, mas obviamente esperado pelo leitor.
Em uma manhã qualquer, às 8:00, Y. P. Golyádkin acorda e levanta, "[...] Aliás, ficou uns dois minutos deitado em sua cama, imóvel, como alguém que ainda não sabe direito se acordou ou continua dormindo" (p.9), e chama seu servo para preparar sua roupa que fora adquirida recentemente. Em seguida, pede para seu criado chamar uma charrete. Quando parte para seu primeiro compromisso - que é uma consulta médica - um colega de trabalho reconhece nosso herói e fala com ele admirado, todavia o nosso herói o ignora.
Ao chegar no consultório do médico Crestian Ivánovitch, conversa de forma inteligível: gaguejando, confuso e afetado ao defender sua honra e dignidade. O médico receita, para o bem de sua enfermidade, a convivência social, porém nosso herói afirma:
"- Eu, Crestian Ivánovitch - continuou o senhor Golyádkin no mesmo tom anterior, um pouco irritado e preocupado com a extrema insistência de Crestian Ivánovitch -, eu, Crestian Ivánovitch, gosto da tranquilidade e não do burburinho da alta sociedade. Lá entre eles, digo, na alta sociedade, Crestian Ivánovitch, é necessário saber fazer rapapés (nisso o senhor Golyádkin roçou com o pé), lá se cobra isso, e também se cobram trocadilhos... capacidade de fazer elogios inebriantes... é isso que lá se cobra, mas isto não aprendi Crestian Ivánovitch, não aprendi esses artifícios; faltou-me tempo" (p. 23).
Nosso herói não sabe falar direito e se percebe isto no diálogo com o médico Crestian Ivánovitch que o observa de forma admirada e curiosa. Golyádkin defende a sua magnitude de caráter e se comparando com seus colegas de trabalho que na visão dele são inimigos, tramadores de intrigas em virtude de uma inveja constante que nutrem pelo mesmo. Ao conversar com o médico, ele afirma não saber lidar com fofocas e manipulações, mas ao mesmo tempo que tenta se distinguir, não tem como falar de si como diferente sem expôr os supostos inimigos, ou seja, fazer fofocas confundindo o leitor sobre seu caráter verídico. E isto fica mais acentuado quando ele desse do consultório, pois diante da sua encenação ou realismo perante o médico, o narrador expressa os pensamentos do nosso herói:
"'Esse doutor é um tolo - pensou o senhor Golyádkin, encafuando-se na carruagem-, um pateta. Talvez até trate bem seus doentes, mas mesmo assim... é uma toupeira'. O senhor Golyádkin acomodou-se, e Pietruchka gritou: 'Vamos lá' - e a carruagem voltou a rodar pela avenida".
Partindo deste momento da narrativa, a história se desdobra como a personagem, nos deixando confusos e intrigados pelas intrigas verídicas ou fictícias do herói Golyádkin.
O herói passa a manhã fazendo compras, depois que saiu do médico. Em seguida, vai a um restaurante que nunca havia ousado entrar. Com esta atitude, demostra-se estar fugindo dos hábitos antigos. Neste lugar, encontra dois colegas de repartição que ficam admirados ao vê-lo no ambiente. O colegas expressam a admiração ao herói que rebate as palavras dizendo:
" - O senhores todos me conhecem, mas até agora só conhecem um lado meu. Neste caso não cabe censurar ninguém, e confesso que eu mesmo tenho uma parte da dupla" (p. 37).
Os colegas de trabalho ficam perplexos, mas os funcionários do restaurante riem da figura do herói, mas o mesmo os rebate de forma ríspida:
"- Riam, senhores, riam por enquanto. Vivam, e verão - disse ele com sentimento de dignidade, pegando o chapéu e rumando para a porta. - Porém vou dizer mais, senhores, acrescentou, dirigindo-se pela última vez aos senhores registradores -, vou dizer mais; ambos estão aqui olho no olho comigo. Eis, senhores, minhas regras: se fracasso, não desanimo; se atingido o objetivo, sigo firme, e seja como for nunca armo tramas. Não sou de intrigas e disto me orgulho. Não serviria para diplomata. Dizem ainda, senhores, que a própria ave voa à procura do caçador. É verdade, e estou propenso a aceitar: mas quem aqui é caçador? Isto ainda é uma questão. (...) despediu-se dos senhores funcionários com um sinal de cabeça e saiu, deixando-os extremamente perplexos (p. 38-39).
Vê-se que Golyádkin provoca uma admiração por fugir de sua vida diária. O que se percebe é que era um homem simples, de vida nas sombras da indigência, indo de sua casa para o trabalho e do trabalho para casa, sem participar de ambientes sociais mais elevados. Não sabendo se comportar de forma politicamente correta, torna-se alvo de riso, mas o interessante é que os funcionários só riem da figura de Golyádkin quando este lhes dá o dinheiro. Isto é algo a se pensar, mas de tão óbvio ninguém nem perde tempo: só valemos o dinheiro que temos, os amigos ricos ou famosos que demostramos ter e a aparente capacidade de enganar os outros é que mostra o valor. A todo momento Golyádkin tenta fazer o novo ambiente social observar seus valores preciosos de dignidade que ele valoriza, mas por isto é alvo de ridicularização. Logo após esta pequena saga diária incomum, o herói segue para seu destino tão planejado. Ele espera por um grande momento: a hora da festa da Clara Olsúfievna. Quando chega na casa, logo de início, o criado afirma que o herói não fora convidado, mas o mesmo afirma que fora convidado. Quando o Senhor Golyádkin se sente ultrajado e tenta entrar, um de seus colegas que encontrara tempos antes, impede sua entrada, foçando-o a descer para que não importune o dono da casa que é o chefe de ambos.
Golyádkin fica decepcionado, anda sem rumo pelas ruas até chegar em uma taverna e depois de tomar umas e outras, volta até a casa de seu chefe para reivindicar seu suposto convite. Fica na espreita no fundo da casa até conseguir uma brecha e entrar pela cozinha. Enquanto nosso herói perambula desorientado, o narrador descreve no capítulo IV a festa de aniversário e toda pomba da casa de Clara Olsúfievna. Todavia, não se detém na descrição deste ambiente, mesmo com toda riqueza deste lugar ele prefere a riqueza do herói. O narrador nos leva, como um anjo guardador ou observador, até o senhor Golyádkin. Para justificar esta ação, o narrador afirma:
"Para tudo isso, como já tive a honra de vos explicar, oh leitores! Falta-me pena, e por esta razão me calo. É melhor nos voltarmos para o senhor Golyádkin, o único, o verdadeiro herói da nossa mui verídica história" (p. 50).
O fato é que o narrador nos leva para o pobre e desolado herói fracassado que toma uma atitude: decidi penetrar na festa. Nosso herói ficou no fundo da casa e quando os empregados deram um vacilo, ele entrou e ficou fascinado pelo ambiente. Alguns se incomodaram rapidamente ao perceber a figura que entrara, mas fizeram o papel da boa e falsa conduta social educada e fingiram não percebê-lo. Golyadkin, meio atrapalhado, pisou no vestido de uma, empurrou outro e enfeitiçado pela beleza de Clara vai até ela. Quando se inclina para lhe saudar, pegar-lhe a mão e a convida para dançar, acaba se atrapalhando e assusta a jovem:
"Clara Olsúfievna soltou um grito; todos se lançaram a fim de soltar sua mão da mão do senhor Golyádkin, e num instante a multidão afastou à força nosso herói a quase dez metros de distância" (p. 60)
Depois de ser expulso da festa, Golyádkin volta para casa desconsolado. O fato é que aquele fato desencadeou em nosso herói um acontecimento ímpar no interior ou exterior que acabou levando o herói rumo a hybris social. O senhor Golyádkin viu uma figura parecida consigo em vários momentos na volta para casa. Quando chegou em sua rua, lá estava a figura. Quando chegou na porta de seu apartamento, lá estava a figura e quando pegou a vê-la e adentrou ao seu quarto:
"[...] O desconhecido estava sentado à sua frente, também de capote e chapéu, em sua própria cama, com um leve sorriso nos lábios e, apertando um pouco os olhos, fazia- lhe um amistoso aceno de cabeça. O senhor Golyádkin quis gritar, mas não pôde, quis protestar de algum modo, mas não teve forças. Ficou de cabelos arrepiados e sentou-se, desfalecido de pavor. Aliás, havia razão para isso. O senhor Golyádkin reconhecia por completo seu amigo noturno. O amigo noturno não era senão ele mesmo - o próprio senhor Golyádkin, outro senhor Golyádkin, mas absolutamente igual a ele - era, em suma, aquilo que se chama de o seu duplo, em todos os sentidos..." (p. 74).
O que pensar com a existência do duplo: será uma criação da personagem principal? Será um parente próximo e muito parecido do senhor Golyádkin, ou será que do próprio interior do inconsciente de Golyádkin saiu seu duplo para fazer companhia ao pobre e desprezado homem. A todo momento, o leitor ficará confuso sobre o Golyádkin segundo que de início se torna amigo do primeiro Golyádkin, mas logo em seguida procura o trabalho e assumir a vida do primeiro. Tudo que o senhor Golyádkin primeiro não conseguia fazer, o seu duplo, seu gêmeo ou seu parente próximo fazia com maestria, inclusive agir com vilania. Se tornou popular, adquiriu amigos, era convidado para conversas com os colegas, enquanto o nosso herói se afundava em tristezas e infâmias de um que queria seu emprego e de outros que se incomodavam com a simples existência dele.
A história é angustiante em vários momentos, pois como leitora me senti uma Golyádkin e isto, segundo o comentário de Paulo Bezerra é bom, porque o próprio Fiódor Dostoiévski tinha uma simpatia por pessoas que não fugiam de suas intrigas interiores, mas ao contrário, buscavam fugir das convenções sociais para entender a si mesmo e ao mundo. O próprio escritor tinha epilepsia e era de certa forma meio Golyádkin também. Não é à toa que Sigmund Freud se interessou tanto pelas obras de F. Dostoiévski, pois neste livro podemos ver expresso a teoria do Id, Ego e Superego do pai da psicanálise e do consciente e inconsciente.
De forma superficial, podemos dizer que S. Freud dividia o interior da mente humana em consciente e inconsciente. No inconsciente se encontra nossos desejos e instintos mais sombrios e mais essenciais para existência como: pulsão de vida e morte, libido que é o desejo que nos impele a luta e conquista.Todavia o consciente nos faz frear nossos desejos, para que não aconteça uma hybris inconsciente que provoque um caos entre os indivíduos na sociedade. Neste jogo, estão em destaque as palavras: Id que se encontra do turbilhão do inconsciente que expressa bem estas pulsões tão perturbadores do inconsciente. O Ego que é mais voltado para o consciente e busca conseguir sempre equilibrar as vontades do Id em relação ao Superego. Por último, o Superego são as "castrações sociais" que nos fazem agir de forma "normal"para não haver um caos existencial coletivo que levaria a uma animalidade: dramático isto?
Observando o senhor Golyádkin, percebemos um homem impelido pelo seu Id a realizar seus desejos, começando por se dar ao direito de dançar com a bela Clara e fazer parte de seu "clube social", mas ele em si só é incapaz por não ser rico, bem afeiçoado as boas palavras e ter uma aparência agradável. Isto é provado até pelo significado de seu nome, pois de acordo com uma nota de rodapé: "O sobrenome Golyádkin deriva de golyadá, golyadka, que significa pobre, indigente, mendigo, miserável" (p. 53).
Após a rejeição social pela sua condição de pobreza, aparece um outro Golyádkin que é totalmente diferente do primeiro e deveras sede ao Id deixando o Golyádkin primeiro como responsável por suas ações, pois as pessoas não distinguem um do outro, ou se um se fundiu no outro e ambos se rebelaram contra o Superego da sociedade hipócrita que não valorizava os valores que Golyádkin primeiro tando valorizava, mas não valiam nada sem que o mesmo possuísse dinheiro.
O duplo do Golyádkin, nosso herói, pode ser uma resposta vingativa à sociedade da época e pode ser tomado agora. O Ego do senhor Golyádkin fora destroçado pela sociedade, pela sua própria condição social a priori e por si mesmo no fim das contas. O fim da história acontece com o estopim que fez surgir o duplo. Algo de terrível acontece com nosso herói, mas deixo para vocês descobrirem ao ler este livro magnífico. Só quis pincelar em tintas negras e, em alguns momentos, usei tinta de luz em meio a escuridão para pintar o quadro da vida não valorizada do herói Golyádkin em meio a sociedade que vivia. Brindemos com água de esgoto aos Golyádkins da vida, porque a sociedade bem aventurada jamais compartilhará seus deliciosos vinhos e champanhes.
Depois de um acontecimento, eis que só fica com nosso herói o seu duplo. Como um escorpião encurralado pelo fogo fomentado pela sociedade traiçoeira, o nosso herói perde o controle e acaba trazendo seu duplo como um ferrão venenoso para sua libertação:
"Quem mais tempo continuou atrás foi o vil gêmeo do senhor Golyádkin. Com as mãos enfiadas no bolsos laterais das calças verdes de seu uniforme, ele corria com ar satisfeito, saltitando ora de um lado, ora do outro da carruagem; vez por outra agarrava-se à moldura da janela e pendurando-se nela, enfiava a cabeça e mandava umas beijocas de despedida para o senhor Golyádkin; mas até ele começou a cansar, sua imagem foi rareando mais e mais e por fim desapareceu de todo (p. 232).
Opções de capas da editora 34 do livro "O Duplo" de Fiódor Dostoiévski
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O Duplo.Tradução de Paulo Bezerra; desenhos de Alfred Kubin de Samuel Tian Jr. São Paulo: Editora 34, 2013. (2º edição). 256 p. (Coleção Leste).